28.10.07

Falar de Fotografia

No Arte Photographica respondo a três perguntas que me foram feitas pelo Sérgio B. Gomes, a propósito do projecto Atlas e do meu trabalho na área da Fotografia. A exposição está na P4Photography até ao dia 10 de Janeiro do próximo ano.

Carlos M. Fernandes, Gulfoss, Islândia, 2006

Carlos Miguel Fernandes

26.10.07

Explicando Atlas

Amanhã (sábado, dia 27) vou guiar a nova turma do curso de fotografia do NAF através da exposição Atlas. Qualquer pessoa que nos queira acompanhar será bem-vinda. Na Galeria P4Photography, Rua dos Navegantes, n. 16, às 17 horas.

Carlos Miguel Fernandes

23.10.07

Prateleira — Mementomori 1990-2000 (ou, Os Dois Mercados)

Num país estrangeiro, a busca por livros de fotografia está quase sempre condicionada pela língua dos textos de introdução. O critério aumenta de importância quando se visitam lugares onde é usado um alfabeto que nem sequer permite identificar o nome do fotógrafo, e onde, por vezes, o viajante não conhece os intérpretes basilares da fotografia local. A Coreia do Sul é, para mim, um desses países. Quando visitei pela primeira vez os alfarrabistas de Busan — agregados em meia dúzia de pequenas ruas a poucas centenas de metros de distância do famoso mercado de peixe — não sabia o que ia encontrar. No final da viagem olhei para a mala e vi uma boa colheita (com Melville a dominar, como não podia deixar de ser numa cidade portuária). Mas só lá estava um livro de fotografia. Chama-se Mementomori 1990-2000 e mostra-nos o trabalho do fotógrafo coreano Lee Sang Ill. Veio comigo porque, no meio de alguns livros de fotografia, Mementomori era o único que tinha uma tradução inglesa do prefácio. Ou, pelo menos, parecia ter, após uma leitura apressada. Mais tarde, olhei com outra atenção. Vamos ler o primeiro parágrafo.

A photographer, Lee, Sang Ill, to show social valuable situation and life emotion of late works formalize ordinary life through coexistence and impact. Also his works to an industrial complex area people of lives explain nature of photography. He appeals a specificity of contemporary art. “in situ”; with emphasizing unique of the place. A talking pictures is an expression of personal with social value and judgment. Moreover it should regard a new to combine rational activities of people and usual value of life.
Thus, he becomes a witness to represent various objectivities. Eventually he is affected by contemporary trends of thought value and politics and seeks photo-realism of lenses as firming documentary with various styles of his photos.


Este texto faz lembrar o quotidiano de um expatriado nas ruas coreanas, onde pouca gente sabe falar inglês e quem sabe...não sabe! O esforço do cidadão comum é enorme, mas, exceptuando alguns casos (profissionais do turismo na capital, por exemplo), o discurso parece saído de um tradutor automático de páginas da internet. Tal como o prefácio de Mementomori.

Mas mesmo no estranho texto transcrito em cima, é possível discernir uma estratégia comum nos meios artísticos actuais. Note-se como o autor (o curador da exposição que o livro registou) tenta enquadrar o trabalho de Lee Sang Ill nas correntes da Arte Contemporânea. Olhando para as imagens de Mementomori (e que nos mostram dez anos de trabalho do fotógrafo) encontramos uma linha claramente documental, até num sentido muito clássico do termo. Predomínio do retrato inserido no ambiente do retratado, utilização frequente da grande angular, temas fortes e emotivos. Um estilo que, Sebastião Salgado e World Press Photo à parte, estamos cada vez mais habituados a ver em livros, revistas ou jornais, e não nas paredes de uma galeria. Mas esta passagem de Fotografia para o patamar da Arte Contemporânea, mesmo quando é feita de forma claramente forçada, implica mais um zero na venda de uma peça. A Fotografia move-se entre dois mercados claramente distintos, e estar de um lado ou do outro da barricada só depende da forma como uma obra é promovida, e não do objecto em si. E no mercado encontramos sempre a lei da oferta e da procura.

Lee Sang Ill

Mas voltemos atrás. Eu disse “passagem forçada”? Há outra forma de ver a coisa: a Arte Contemporânea (no sentido não literal do termo, claro) é um conceito vazio alimentado por uma clientela cada vez mais desenraizada da sua cultura e viciada na arte popular. São os efeitos da democratização do acesso à cultura, sobre os quais não vale a pena estar aqui a moralizar. Basta apenas dizer que, num ambiente de contornos tão levianos, é fácil transportar uma obra de um lado para o outro da fronteira. Não é o objecto que conta, mas apenas o discurso. E por vezes é suficiente aumentar a dimensão de uma peça para que esta abandone o frágil estatuto de “fotografia” e passe a ser admirada como uma obra de Arte Contemporânea.

Carlos M. Fernandes, Seul, 2007

Por isso, ao contrário do que a minha expressão “passagem forçada” pode dar a entender, penso que o curador de Lee Sang Ill faz muito bem quando tenta arrastar um trabalho de carácter marcadamente fotográfico (hoje já não há fotógrafos, há artistas que usam a fotografia!) para um território estranho. Goste-se ou não do estilo, pelo menos injecta um pouco de vida num ambiente que revela sintomas de indolência e superficialidade. A fotografia documental e a fotografia de arquitectura/”paisagem urbana” são talvez duas das grandes forças que podem agitar a Arte Contemporânea, retirá-la deste marasmo, e ao mesmo tempo aliviar a Fotografia das grilhetas que alguns dos seus agentes lhe impuseram. Como diz um amigo, bom entendedor e amante da arte fotográfica como poucos em Portugal, uma “fotografia é apenas um pedaço de papel”. Se desmistificarmos esse pedaço de papel dar-lhe-emos, paradoxalmente, o valor que tem perdido nas últimas décadas. Basta varrer o lixo em redor.

Carlos Miguel Fernandes

19.10.07

Thomas Weinberger e a Fotografia Alemã

Thomas Weinberger, Dubai

A formação do Thomas, em Arquitectura, é notória na forma como escolhe e retrata as paisagens urbanas, mas é à fotografia alemã (Thomas Weinberger nasceu em Munique em 1964) que vamos buscar pistas para entender a motivação e o caldo cultural que precede as suas obras de grande formato e iluminação indecifrável. Qualquer apreciação e estudo do trabalho de Weinberger irá desembocar inevitavelmente no casal Becher. Bernd (1931-2007) e Hilla Becher, autores de um épico inventário da arquitectura popular da Europa Central, foram professores de Andreas Gursky, um dos nomes grandes da fotografia alemã da actualidade, e artista cuja obra se cruza com o trabalho de Thomas Weinberger em muitos aspectos. Albert Renger-Patzsch (1897-1966) também é uma personagem relevante nesta história, mas eu vou mais longe, e atrevo-me a referir August Sander (1876-1964) e o seu ímpeto de catalogar a sociedade alemã do início do século passado, com retratos frontais e linhas verticais dominantes (e recorde-se ainda semelhante empresa de Karl Blossfeldt, mas com plantas).

Bern e Hilla Becher, Kuhlturme, 1967-73


Rigor técnico, objectividade, simetria, compressão dos planos e até, mais recentemente, uma certa tendência para a monumentalidade (vide o já referido Gursky e também Candida Höfer); são estes os ingredientes principais da fotografia alemã do século XX e início do século XXI. Quebrando, com subtileza, a obsessão pela simetria, e aproveitando as novas ferramentas disponibilizadas pela emergência da fotografia digital, Thomas Weinberger domesticou uma tendência para a indecisão, cravou um carácter temporal nas suas imagens e criou assim um visão muito pessoal do mundo, a qual, no entanto, não mascara a sua génese.

Andreas Gursky, 99 Cent II Diptychon (imagem esquerda), 2001


Carlos Miguel Fernandes

7.10.07

Atlas — Uma História de Deuses e de Homens

O médico segurou os braços das cadeiras a mãos ambas, apertou os músculos da barriga, fechou as pálperas com força, e tal como costumava fazer diante do sofrimento, da angústia e da insónia, pôs-se a imaginar o mar.

António Lobo Antunes, Memória de Elefante

Contemplação. Confronto. Fusão. Recusa e agregação. É com estas linhas que Atlas se tece. Tendo o Atlântico como pretexto, a narrativa percorre as intrincadas relações do Homem com o ambiente que o rodeia e com as forças indomáveis que o subjugam e arrastam para o abrigo. Aí, agregado nas urbes, confronta então outra energia menos palpável, que se revela nas ondas impiedosas de demónios interiores que o mergulham num estado de solidão ilusório. O Atlântico — território de pescadores, brisas gélidas e contos heróicos — é apenas um dos palcos desta tragoidia, um lugar de contemplação mas também de confronto, onde o Homem enfrenta a natureza pura com o seu engenho e engenhos, e os seus desejos interiores com a graça de um guerreiro. Mas, ao contrário do que aconteceu na Guerra do Titãs, não há vencedores nesta batalha eterna. Há apenas o ciclo da vida e da morte.


Atlas e a P4Photography têm as portas abertas. Até 10 de Janeiro no n. 16 da Rua dos Navegantes. De Carlos Miguel Fernandes, João Mariano e Rui Fonseca. Livro Atlas com texto de Madalena Lello.

Carlos Miguel Fernandes

1.10.07

Miguel de Unamuno e Robert Frank

Meu pai morreu mal eu tinha completado os seis anos e apagou-se-me da memória toda e qualquer imagem sua, substituída – apagada, talvez – por imagens artísticas ou artificiais, as das fotografias; e entre outras a de um
daguerreótipo dos seus tempos de rapaz, era ele então apenas filho, também. Se bem que nem toda a imagem sua me tivesse desvanecido, confusamente, embora, e numa névoa oceânica, sem rasgos distintos, ainda o vislumbro num momento em que me foi dado a descobrir, era eu bem pequenino, o mistério da linguagem.


Miguel de Unamuno, Como se Faz Uma Novela


Já falei da daguerreotipia aqui, e não voltarei para já a esse caminho. Deixemos para trás o daguerreótipo de Unamuno, a fotografia do pai que foi filho, e concentremos o olhar nesta imagem de Robert Frank que nos mostra dois filhos que não sobreviveram ao pai. Pablo, que nos fita com a cara colada ao vidro, morreu em 1994. A irmã Andrea, a menina cujos olhos nos conduzem de volta ao par mãe-filho, falecera antes, em 1974, num acidente de aviação, com apenas duas décadas de vida. No centro, num quase imperceptível reflexo, surge o vestígio negro do fotógrafo. Este, uma vez detectado, capitula, abandona o seu covil, e entrega-se como punctum improvável ao olhar do observador.


Robert Frank, Andrea, Pablo, Mary, Texas, 1956

Como terão sobrevivido, na memória de Frank, as imagens dos filhos? Ter-se-ão mantido, ilusoriamente, reais, vivas? Ou terão sido também substituídas por ícones artificiais?, produtos contrafeitos pela estrutura cerebral de um criador de imagens sem cor, e inspirados em recordações tão perfeitas como a fotografia referida, na qual Robert Frank congelou, num qualquer lugar do Texas, e para a eternidade, as expressões daqueles que o seguiam na grande aventura. Todas as famílias têm fotografias assim. Enquanto posavam, estavam todos protegidos pelo espaço de alguns segundos e estes segundos tornaram-se uma realidade. Da simplicidade destas palavras de Patrick Modiano, em Dora Bruder, solta-se uma sageza triste e solitária, que não é mais do que resignação perante o inevitável drama humano.


Robert Frank nasceu em 1924 em Zurich. Em 1947 parte para Nova Iorque, onde trabalha na Harper’s Bazaar, Fortune, Life e Look. Em 1955 e 1956, graças à obtenção de a uma bolsa Guggenheim, viaja exaustivamente pelos Estados Unidos da América. Dessa viagem resulta o livro Les Americains, publicado em 1958 em França e Itália. Mal recebido nos Estados Unidos, onde foi rotulado de anti-americano, o livro só chegaria à terra dos retratados no ano seguinte, prefaciado por Jack Kerouac. Marco enorme na História da Fotografia, a obra serviu de charneira no percurso de Frank: em 1960, guarda a Leica e passa a dedicar-se apenas à realização de filmes. Mas o fotógrafo não encontrou na vida um eco do seu sucesso como artista. Para além da perda de dois filhos, Frank teve que lidar com a deficiência mental do seu irmão, experiência dolorosa que retratou em Me and My Brother, filme concluído em 1968.


Regressa à Fotografia em 1972. Abandona o estilo que o consagrou, renega a herança de Walker Evans, e inicia um período menos formal, de menor pendor documental e fortemente marcado pelos cruéis acontecimentos que devastam a sua vida pessoal e pelo ambiente gélido e agreste que rodeia o seu refúgio na Nova Escócia, a casa que havia comprado, em 1970, com June Leaf, a sua mais recente companheira (e com quem se casa em 1975).


Robert Frank, Sick of Goodby’s, Mabou, 1978


Robert Frank ainda vive com June Leaf em Mabou, Nova Escócia.

Carlos Miguel Fernandes


Bibliografia
1 — Calado, J. 1839-1989 Um Ano Depois/One Year Later, Porto Editora/Secretaria de Estado da Cultura.
2 — Frank, R., Robert Frank, Centre National de la Photographie (colecção Photo Poche n.10, textos de Robert Frank).