Nessa manhã meu pai chegou quando Massino ainda dormia. O velho se intrometeu no meu quarto e espreitou tudo como um cachorro farejando desconfianças. Parou junto à mesa onde o italiano deixara o gravador.
- É esta máquina que fotografa as vozes?
- É.
- Que vergonha, meu filho. Que vergonha.
Mia Couto, O Último Voo do Flamingo
Mia Couto é o escultor de uma nova língua para a memória futura da lusofonia. O escritor moçambicano, enriquecido pelos sons impolutos de um idioma ainda livre dos grilhões da forma, vem criando um mosaico de neologismos, glosando, através da ficção, uma oralidade cuja riqueza pode ficar perdida nos caminhos percorridos pelos longos passos da História. No excerto transcrito, mais do que a invenção das palavras, encontramos um recurso literário aparentemente rudimentar, mas que apresenta cambiantes imprevistas.
Metáfora, — se aceitarmos a personificação quase intrínseca dos aparatos evocados, e trocarmos o sujeito do verbo — ou apenas metonímia? Ou será animismo, pois, apesar do senso comum nos conduzir frequentemente até à mais antropomórfica das figuras de estilo, a fotografia é uma nobre arte que demanda a sageza humana, que recusa a inconsequência de um mecanismo inanimado e a redução do acto de fotografar a um instante mecânico? E as vozes? O que são as vozes? Sons emitidos pela laringe com o ar que sai dos pulmões, ou discurso humano coerente?
Mas deixemos a estrutura literária e concentremo-nos na simplicidade das palavras e na complexidade dos conceitos. Com Mia Couto assistimos à irrupção do polimorfismo no verbo “fotografar”. Mas foi George Eastman (1854-1932) quem, no final do século XIX, democratizou o acto de fotografar.
- É esta máquina que fotografa as vozes?
- É.
- Que vergonha, meu filho. Que vergonha.
Mia Couto, O Último Voo do Flamingo
Mia Couto é o escultor de uma nova língua para a memória futura da lusofonia. O escritor moçambicano, enriquecido pelos sons impolutos de um idioma ainda livre dos grilhões da forma, vem criando um mosaico de neologismos, glosando, através da ficção, uma oralidade cuja riqueza pode ficar perdida nos caminhos percorridos pelos longos passos da História. No excerto transcrito, mais do que a invenção das palavras, encontramos um recurso literário aparentemente rudimentar, mas que apresenta cambiantes imprevistas.
Metáfora, — se aceitarmos a personificação quase intrínseca dos aparatos evocados, e trocarmos o sujeito do verbo — ou apenas metonímia? Ou será animismo, pois, apesar do senso comum nos conduzir frequentemente até à mais antropomórfica das figuras de estilo, a fotografia é uma nobre arte que demanda a sageza humana, que recusa a inconsequência de um mecanismo inanimado e a redução do acto de fotografar a um instante mecânico? E as vozes? O que são as vozes? Sons emitidos pela laringe com o ar que sai dos pulmões, ou discurso humano coerente?
Mas deixemos a estrutura literária e concentremo-nos na simplicidade das palavras e na complexidade dos conceitos. Com Mia Couto assistimos à irrupção do polimorfismo no verbo “fotografar”. Mas foi George Eastman (1854-1932) quem, no final do século XIX, democratizou o acto de fotografar.
Eastman, desde da cozinha da sua mãe, onde produzia emulsões e negativos de vidro, rodeado por um magote de panelas, construiu um império multinacional, a Eastman Kodak Company, o qual ainda hoje se movimenta com facilidade numa parcela significativa do mercado fotográfico. Dos negativos de vidro, que começou a fabricar em 1880, Eastman rapidamente se envolveu em processos inovadores e fundamentais para o salto evolutivo que, no final do século XIX, marcariam o processo fotográfico. Em 1888, a Kodak nº1 — um aparelho simples, de formato paralelepipédico, com foco e tempo de exposição fixos — foi lançada no mercado americano, e em pouco tempo, a sua extraordinária facilidade de utilização alargou consideravelmente o conjunto de praticantes da arte fotográfica. Os negativos em vidro, nada maleáveis e de natureza individual, davam o seu lugar, pela primeira vez, a um rolo flexível, sensível à luz, no qual era possível registar uma centena de negativos. Depois de captadas as imagens, o aparelho era enviado para o fabricante, e este, depois de processar a película e imprimir as provas em papel, devolvia-o ao seu proprietário, acompanhado pelas desejadas fotografias e devidamente guarnecido com um novo rolo.Apesar do êxito, o processo, que parecia marcar uma espécie de regresso ao passado da talbotipia (ou calotipia), — método contemporâneo da daguerreotipia, criado por Henry Fox Talbot, que consistia na captação de imagens num papel previamente sensibilizado com sais de prata, e posterior passagem para positivo através de contacto com outra superfície sensível — apresentava o mesmo defeito do qual enfermava o seu antepassado: as imagens positivas, por não serem obtidas através de um negativo transparente, perdiam qualidade, na definição e no contraste, mesmo quando o rolo era mergulhado em óleo de rícino para perder alguma opacidade (tal como também acontecia com os calótipos, nos anos quarenta do século XIX).No entanto, Eastman não descansou à sombra do sucesso obtido pela nº1. O suporte em papel acabou por ser substituído por plástico (nitrato de celulose), em 1889, e, até ao aparecimento da fotografia digital, foi este o paradigma dominante no mercado dos materiais fotográficos sensíveis à luz. O sucesso do velho produtor de emulsões é histórico. A Kodak nº1 vendeu 30 000 unidades no primeiro ano de comercialização, e a sua sucessora, a Kodak nº2, já tinha sido comprada, a meio da década de 1890, por mais de 100 000 amadores. A partir dessa altura, a fotografia deixou de ser privilégio de profissionais e aristocratas ociosos, e espalhou-se por uma população ávida de novas imagens.
Carlos Miguel Fernandes
1- Pavão, L., Conservação de Colecções de Fotografia, Dinalivro, 1997.
2- Pollack, The Picture History of Photography, Harry N. Abrams, Inc., New York, 1977.
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