Embora um ampliação, que me deu em Praga a sobrinha de Franz, tenha para mim um valor especial, nem por isso deixa de ser uma fotografia muito conhecida, a mesma, sem dúvida, a que Borges aludiu, nessa noite de que te falei, em Buenos Aires, e onde se vê Kafka, de pé sobre o empedrado, em frente a uma loja com o letreiro de Herman Pollak: veste um fato de três peças cinzento, um casaco escuro, tem um colarinho redondo e um gravata – aparentemente a mesma roupa que noutra fotografia onde está encostado ao pedestal de uma coluna, com a sua irmã Ottla -, e um chapéu cuja sombra lhe desce precisamente, sobre o rosto, até aquela linha debaixo dos olhos, deixando na luz a boca grande de sorriso triste,
o nariz, e o lóbulo inferior das orelhas.
Olivier Rolin, O Bar da Ressaca
Provavelmente, é esta a imagem que Rolin descreve em O Bar da Ressaca, obra que vagueia por Praga, Buenos Aires e Trieste, num delírio de palavras etílicas. (Não é claramente visível na reprodução, mas, no pequeno letreiro branco, junto ao ombro direito de Kafka, pode ler-se “Herman Pollak”.)
Praga, a cidade de Kafka. Será? Uma outra leitura da obra do escritor judeu pode levar-nos por diferentes caminhos, os quais talvez até se bifurquem.
Em 1923, numa carta à sua irmã Ottla, Kafka falava numa cidade que amava, mas também temia. Praga era a sua prisão, a sua colónia penitenciária, a sua tortura, o rosto da infelicidade, a matrona perfeita que, emparelhada com o seu pai, tão bem representava a tirania da família autoritária da Europa germânica e judia.
Praga vende Kafka e Kafka vende Praga, mas o autor nunca escreveu na língua checa. O fantasma de Kafka persegue o turista em cada esquina de Praga, e ao seu nome estão associadas inúmeras casas no centro da capital da Boémia. Mas as palavras de Kundera, (...) sobre Franz Kafka (que, infeliz a vida toda na cidade, se tornara graças às agências de viagens, no seu santo padroeiro) (...) talvez sejam mais verdadeiras do que uma leitura apressada do seu desabafo possa levar a crer. Kafka viveu aqui, Kafka trabalhou ali, Kafka escreveu O Castelo acolá...Kafka viveu e morreu como um cão nesta cidade.
A segunda imagem que Rolin descreve pode ser esta.
O escritor com Ottla, a sua irmã favorita. Um sorriso raro nos lábios. Um conforto fraterno, longe da mãe-cidade e do deus-pai.
Carlos Miguel Fernandes
P.S. Estas duas fotografias, e outras imagens de Kafka e de Praga, podem ser encontradas no livro A Praga de Franz Kafka, de Klaus Wagenbach, traduzido e editado em Portugal pela Fenda em 2001.
3 comentários:
CMF, gostei das suas fotografias que foram a leilão no último sábado, e tb de ouvir o despique das duas últimas, parabêns
Madalena, obrigado! No sábado cheguei ao CCB já com o leilão a decorrer. Tinha uma coisa para si (relacionada com as fotografias que foram a leilão)! Vi-a lá atrás, mas depois de terminado o leilão não a encontrei mais. Fica para a próxima.
Carlos, deixa-me curiosa, não sei quando será a próxima mas espero que seja em breve.
um abraço
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