23.10.07

Prateleira — Mementomori 1990-2000 (ou, Os Dois Mercados)

Num país estrangeiro, a busca por livros de fotografia está quase sempre condicionada pela língua dos textos de introdução. O critério aumenta de importância quando se visitam lugares onde é usado um alfabeto que nem sequer permite identificar o nome do fotógrafo, e onde, por vezes, o viajante não conhece os intérpretes basilares da fotografia local. A Coreia do Sul é, para mim, um desses países. Quando visitei pela primeira vez os alfarrabistas de Busan — agregados em meia dúzia de pequenas ruas a poucas centenas de metros de distância do famoso mercado de peixe — não sabia o que ia encontrar. No final da viagem olhei para a mala e vi uma boa colheita (com Melville a dominar, como não podia deixar de ser numa cidade portuária). Mas só lá estava um livro de fotografia. Chama-se Mementomori 1990-2000 e mostra-nos o trabalho do fotógrafo coreano Lee Sang Ill. Veio comigo porque, no meio de alguns livros de fotografia, Mementomori era o único que tinha uma tradução inglesa do prefácio. Ou, pelo menos, parecia ter, após uma leitura apressada. Mais tarde, olhei com outra atenção. Vamos ler o primeiro parágrafo.

A photographer, Lee, Sang Ill, to show social valuable situation and life emotion of late works formalize ordinary life through coexistence and impact. Also his works to an industrial complex area people of lives explain nature of photography. He appeals a specificity of contemporary art. “in situ”; with emphasizing unique of the place. A talking pictures is an expression of personal with social value and judgment. Moreover it should regard a new to combine rational activities of people and usual value of life.
Thus, he becomes a witness to represent various objectivities. Eventually he is affected by contemporary trends of thought value and politics and seeks photo-realism of lenses as firming documentary with various styles of his photos.


Este texto faz lembrar o quotidiano de um expatriado nas ruas coreanas, onde pouca gente sabe falar inglês e quem sabe...não sabe! O esforço do cidadão comum é enorme, mas, exceptuando alguns casos (profissionais do turismo na capital, por exemplo), o discurso parece saído de um tradutor automático de páginas da internet. Tal como o prefácio de Mementomori.

Mas mesmo no estranho texto transcrito em cima, é possível discernir uma estratégia comum nos meios artísticos actuais. Note-se como o autor (o curador da exposição que o livro registou) tenta enquadrar o trabalho de Lee Sang Ill nas correntes da Arte Contemporânea. Olhando para as imagens de Mementomori (e que nos mostram dez anos de trabalho do fotógrafo) encontramos uma linha claramente documental, até num sentido muito clássico do termo. Predomínio do retrato inserido no ambiente do retratado, utilização frequente da grande angular, temas fortes e emotivos. Um estilo que, Sebastião Salgado e World Press Photo à parte, estamos cada vez mais habituados a ver em livros, revistas ou jornais, e não nas paredes de uma galeria. Mas esta passagem de Fotografia para o patamar da Arte Contemporânea, mesmo quando é feita de forma claramente forçada, implica mais um zero na venda de uma peça. A Fotografia move-se entre dois mercados claramente distintos, e estar de um lado ou do outro da barricada só depende da forma como uma obra é promovida, e não do objecto em si. E no mercado encontramos sempre a lei da oferta e da procura.

Lee Sang Ill

Mas voltemos atrás. Eu disse “passagem forçada”? Há outra forma de ver a coisa: a Arte Contemporânea (no sentido não literal do termo, claro) é um conceito vazio alimentado por uma clientela cada vez mais desenraizada da sua cultura e viciada na arte popular. São os efeitos da democratização do acesso à cultura, sobre os quais não vale a pena estar aqui a moralizar. Basta apenas dizer que, num ambiente de contornos tão levianos, é fácil transportar uma obra de um lado para o outro da fronteira. Não é o objecto que conta, mas apenas o discurso. E por vezes é suficiente aumentar a dimensão de uma peça para que esta abandone o frágil estatuto de “fotografia” e passe a ser admirada como uma obra de Arte Contemporânea.

Carlos M. Fernandes, Seul, 2007

Por isso, ao contrário do que a minha expressão “passagem forçada” pode dar a entender, penso que o curador de Lee Sang Ill faz muito bem quando tenta arrastar um trabalho de carácter marcadamente fotográfico (hoje já não há fotógrafos, há artistas que usam a fotografia!) para um território estranho. Goste-se ou não do estilo, pelo menos injecta um pouco de vida num ambiente que revela sintomas de indolência e superficialidade. A fotografia documental e a fotografia de arquitectura/”paisagem urbana” são talvez duas das grandes forças que podem agitar a Arte Contemporânea, retirá-la deste marasmo, e ao mesmo tempo aliviar a Fotografia das grilhetas que alguns dos seus agentes lhe impuseram. Como diz um amigo, bom entendedor e amante da arte fotográfica como poucos em Portugal, uma “fotografia é apenas um pedaço de papel”. Se desmistificarmos esse pedaço de papel dar-lhe-emos, paradoxalmente, o valor que tem perdido nas últimas décadas. Basta varrer o lixo em redor.

Carlos Miguel Fernandes

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