Carlos M. Fernandes, Gulfoss, Islândia, 2006
Carlos Miguel Fernandes
— Bem, na verdade a fotografia é uma coisa maravilhosa, quando se começa a pensar.
James Joyce, Gente de Dublin
Carlos M. Fernandes, Gulfoss, Islândia, 2006
Carlos Miguel Fernandes
permite identificar o nome do fotógrafo, e onde, por vezes, o viajante não conhece os intérpretes basilares da fotografia local. A Coreia do Sul é, para mim, um desses países. Quando visitei pela primeira vez os alfarrabistas de Busan — agregados em meia dúzia de pequenas ruas a poucas centenas de metros de distância do famoso mercado de peixe — não sabia o que ia encontrar. No final da viagem olhei para a mala e vi uma boa colheita (com Melville a dominar, como não podia deixar de ser numa cidade portuária). Mas só lá estava um livro de fotografia. Chama-se Mementomori 1990-2000 e mostra-nos o trabalho do fotógrafo coreano Lee Sang Ill. Veio comigo porque, no meio de alguns livros de fotografia, Mementomori era o único que tinha uma tradução inglesa do prefácio. Ou, pelo menos, parecia ter, após uma leitura apressada. Mais tarde, olhei com outra atenção. Vamos ler o primeiro parágrafo.
Lee Sang Ill
Carlos M. Fernandes, Seul, 2007
Por isso, ao contrário do que a minha expressão “passagem forçada” pode dar a entender, penso que o curador de Lee Sang Ill faz muito bem quando tenta arrastar um trabalho de carácter marcadamente fotográfico (hoje já não há fotógrafos, há artistas que usam a fotografia!) para um território estranho. Goste-se ou não do estilo, pelo menos injecta um pouco de vida num ambiente que revela sintomas de indolência e superficialidade. A fotografia documental e a fotografia de arquitectura/”paisagem urbana” são talvez duas das grandes forças que podem agitar a Arte Contemporânea, retirá-la deste marasmo, e ao mesmo tempo aliviar a Fotografia das grilhetas que alguns dos seus agentes lhe impuseram. Como diz um amigo, bom entendedor e amante da arte fotográfica como poucos em Portugal, uma “fotografia é apenas um pedaço de papel”. Se desmistificarmos esse pedaço de papel dar-lhe-emos, paradoxalmente, o valor que tem perdido nas últimas décadas. Basta varrer o lixo em redor.
Carlos Miguel Fernandes
Bern e Hilla Becher, Kuhlturme, 1967-73
Andreas Gursky, 99 Cent II Diptychon (imagem esquerda), 2001
Carlos Miguel Fernandes
O médico segurou os braços das cadeiras a mãos ambas, apertou os músculos da barriga, fechou as pálperas com força, e tal como costumava fazer diante do sofrimento, da angústia e da insónia, pôs-se a imaginar o mar.
António Lobo Antunes, Memória de Elefante
Contemplação. Confronto. Fusão. Recusa e agregação. É com estas linhas que Atlas se tece. Tendo o Atlântico como pretexto, a narrativa percorre as intrincadas relações do Homem com o ambiente que o rodeia e com as forças indomáveis que o subjugam e arrastam para o abrigo. Aí, agregado nas urbes, confronta então outra energia menos palpável, que se revela nas ondas impiedosas de demónios interiores que o mergulham num estado de solidão ilusório. O Atlântico — território de pescadores, brisas gélidas e contos heróicos — é apenas um dos palcos desta tragoidia, um lugar de contemplação mas também de confronto, onde o Homem enfrenta a natureza pura com o seu engenho e engenhos, e os seus desejos interiores com a graça de um guerreiro. Mas, ao contrário do que aconteceu na Guerra do Titãs, não há vencedores nesta batalha eterna. Há apenas o ciclo da vida e da morte.
Meu pai morreu mal eu tinha completado os seis anos e apagou-se-me da memória toda e qualquer imagem sua, substituída – apagada, talvez – por imagens artísticas ou artificiais, as das fotografias; e entre outras a de um
daguerreótipo dos seus tempos de rapaz, era ele então apenas filho, também. Se bem que nem toda a imagem sua me tivesse desvanecido, confusamente, embora, e numa névoa oceânica, sem rasgos distintos, ainda o vislumbro num momento em que me foi dado a descobrir, era eu bem pequenino, o mistério da linguagem.
Robert Frank, Andrea, Pablo, Mary, Texas, 1956
Como terão sobrevivido, na memória de Frank, as imagens dos filhos? Ter-se-ão mantido, ilusoriamente, reais, vivas? Ou terão sido também substituídas por ícones artificiais?, produtos contrafeitos pela estrutura cerebral de um criador de imagens sem cor, e inspirados em recordações tão perfeitas como a fotografia referida, na qual Robert Frank congelou, num qualquer lugar do Texas, e para a eternidade, as expressões daqueles que o seguiam na grande aventura. Todas as famílias têm fotografias assim. Enquanto posavam, estavam todos protegidos pelo espaço de alguns segundos e estes segundos tornaram-se uma realidade. Da simplicidade destas palavras de Patrick Modiano, em Dora Bruder, solta-se uma sageza triste e solitária, que não é mais do que resignação perante o inevitável drama humano.
Robert Frank nasceu em 1924 em Zurich. Em 1947 parte para Nova Iorque, onde trabalha na Harper’s Bazaar, Fortune, Life e Look. Em 1955 e 1956, graças à obtenção de a uma bolsa Guggenheim, viaja exaustivamente pelos Estados Unidos da América. Dessa viagem resulta o livro Les Americains, publicado em 1958 em França e Itália. Mal recebido nos Estados Unidos, onde foi rotulado de anti-americano, o livro só chegaria à terra dos retratados no ano seguinte, prefaciado por Jack Kerouac. Marco enorme na História da Fotografia, a obra serviu de charneira no percurso de Frank: em 1960, guarda a Leica e passa a dedicar-se apenas à realização de filmes. Mas o fotógrafo não encontrou na vida um eco do seu sucesso como artista. Para além da perda de dois filhos, Frank teve que lidar com a deficiência mental do seu irmão, experiência dolorosa que retratou em Me and My Brother, filme concluído em 1968.
Regressa à Fotografia em 1972. Abandona o estilo que o consagrou, renega a herança de Walker Evans, e inicia um período menos formal, de menor pendor documental e fortemente marcado pelos cruéis acontecimentos que devastam a sua vida pessoal e pelo ambiente gélido e agreste que rodeia o seu refúgio na Nova Escócia, a casa que havia comprado, em 1970, com June Leaf, a sua mais recente companheira (e com quem se casa em 1975).
Robert Frank, Sick of Goodby’s, Mabou, 1978
Robert Frank ainda vive com June Leaf em Mabou, Nova Escócia.
Carlos Miguel Fernandes