Carlos M. Fernandes, Gulfoss, Islândia, 2006
Carlos Miguel Fernandes
— Bem, na verdade a fotografia é uma coisa maravilhosa, quando se começa a pensar.
James Joyce, Gente de Dublin
Carlos M. Fernandes, Gulfoss, Islândia, 2006
Carlos Miguel Fernandes
Carlos M. Fernandes, Seul, 2007
Por isso, ao contrário do que a minha expressão “passagem forçada” pode dar a entender, penso que o curador de Lee Sang Ill faz muito bem quando tenta arrastar um trabalho de carácter marcadamente fotográfico (hoje já não há fotógrafos, há artistas que usam a fotografia!) para um território estranho. Goste-se ou não do estilo, pelo menos injecta um pouco de vida num ambiente que revela sintomas de indolência e superficialidade. A fotografia documental e a fotografia de arquitectura/”paisagem urbana” são talvez duas das grandes forças que podem agitar a Arte Contemporânea, retirá-la deste marasmo, e ao mesmo tempo aliviar a Fotografia das grilhetas que alguns dos seus agentes lhe impuseram. Como diz um amigo, bom entendedor e amante da arte fotográfica como poucos em Portugal, uma “fotografia é apenas um pedaço de papel”. Se desmistificarmos esse pedaço de papel dar-lhe-emos, paradoxalmente, o valor que tem perdido nas últimas décadas. Basta varrer o lixo em redor.
Carlos Miguel Fernandes
Bern e Hilla Becher, Kuhlturme, 1967-73
Andreas Gursky, 99 Cent II Diptychon (imagem esquerda), 2001
Carlos Miguel Fernandes
O médico segurou os braços das cadeiras a mãos ambas, apertou os músculos da barriga, fechou as pálperas com força, e tal como costumava fazer diante do sofrimento, da angústia e da insónia, pôs-se a imaginar o mar.
António Lobo Antunes, Memória de Elefante
Contemplação. Confronto. Fusão. Recusa e agregação. É com estas linhas que Atlas se tece. Tendo o Atlântico como pretexto, a narrativa percorre as intrincadas relações do Homem com o ambiente que o rodeia e com as forças indomáveis que o subjugam e arrastam para o abrigo. Aí, agregado nas urbes, confronta então outra energia menos palpável, que se revela nas ondas impiedosas de demónios interiores que o mergulham num estado de solidão ilusório. O Atlântico — território de pescadores, brisas gélidas e contos heróicos — é apenas um dos palcos desta tragoidia, um lugar de contemplação mas também de confronto, onde o Homem enfrenta a natureza pura com o seu engenho e engenhos, e os seus desejos interiores com a graça de um guerreiro. Mas, ao contrário do que aconteceu na Guerra do Titãs, não há vencedores nesta batalha eterna. Há apenas o ciclo da vida e da morte.
Meu pai morreu mal eu tinha completado os seis anos e apagou-se-me da memória toda e qualquer imagem sua, substituída – apagada, talvez – por imagens artísticas ou artificiais, as das fotografias; e entre outras a de um
daguerreótipo dos seus tempos de rapaz, era ele então apenas filho, também. Se bem que nem toda a imagem sua me tivesse desvanecido, confusamente, embora, e numa névoa oceânica, sem rasgos distintos, ainda o vislumbro num momento em que me foi dado a descobrir, era eu bem pequenino, o mistério da linguagem.
Robert Frank, Andrea, Pablo, Mary, Texas, 1956
Como terão sobrevivido, na memória de Frank, as imagens dos filhos? Ter-se-ão mantido, ilusoriamente, reais, vivas? Ou terão sido também substituídas por ícones artificiais?, produtos contrafeitos pela estrutura cerebral de um criador de imagens sem cor, e inspirados em recordações tão perfeitas como a fotografia referida, na qual Robert Frank congelou, num qualquer lugar do Texas, e para a eternidade, as expressões daqueles que o seguiam na grande aventura. Todas as famílias têm fotografias assim. Enquanto posavam, estavam todos protegidos pelo espaço de alguns segundos e estes segundos tornaram-se uma realidade. Da simplicidade destas palavras de Patrick Modiano, em Dora Bruder, solta-se uma sageza triste e solitária, que não é mais do que resignação perante o inevitável drama humano.
Robert Frank nasceu em 1924 em Zurich. Em 1947 parte para Nova Iorque, onde trabalha na Harper’s Bazaar, Fortune, Life e Look. Em 1955 e 1956, graças à obtenção de a uma bolsa Guggenheim, viaja exaustivamente pelos Estados Unidos da América. Dessa viagem resulta o livro Les Americains, publicado em 1958 em França e Itália. Mal recebido nos Estados Unidos, onde foi rotulado de anti-americano, o livro só chegaria à terra dos retratados no ano seguinte, prefaciado por Jack Kerouac. Marco enorme na História da Fotografia, a obra serviu de charneira no percurso de Frank: em 1960, guarda a Leica e passa a dedicar-se apenas à realização de filmes. Mas o fotógrafo não encontrou na vida um eco do seu sucesso como artista. Para além da perda de dois filhos, Frank teve que lidar com a deficiência mental do seu irmão, experiência dolorosa que retratou em Me and My Brother, filme concluído em 1968.
Regressa à Fotografia em 1972. Abandona o estilo que o consagrou, renega a herança de Walker Evans, e inicia um período menos formal, de menor pendor documental e fortemente marcado pelos cruéis acontecimentos que devastam a sua vida pessoal e pelo ambiente gélido e agreste que rodeia o seu refúgio na Nova Escócia, a casa que havia comprado, em 1970, com June Leaf, a sua mais recente companheira (e com quem se casa em 1975).
Robert Frank ainda vive com June Leaf em Mabou, Nova Escócia.
Carlos Miguel Fernandes