1.10.07

Miguel de Unamuno e Robert Frank

Meu pai morreu mal eu tinha completado os seis anos e apagou-se-me da memória toda e qualquer imagem sua, substituída – apagada, talvez – por imagens artísticas ou artificiais, as das fotografias; e entre outras a de um
daguerreótipo dos seus tempos de rapaz, era ele então apenas filho, também. Se bem que nem toda a imagem sua me tivesse desvanecido, confusamente, embora, e numa névoa oceânica, sem rasgos distintos, ainda o vislumbro num momento em que me foi dado a descobrir, era eu bem pequenino, o mistério da linguagem.


Miguel de Unamuno, Como se Faz Uma Novela


Já falei da daguerreotipia aqui, e não voltarei para já a esse caminho. Deixemos para trás o daguerreótipo de Unamuno, a fotografia do pai que foi filho, e concentremos o olhar nesta imagem de Robert Frank que nos mostra dois filhos que não sobreviveram ao pai. Pablo, que nos fita com a cara colada ao vidro, morreu em 1994. A irmã Andrea, a menina cujos olhos nos conduzem de volta ao par mãe-filho, falecera antes, em 1974, num acidente de aviação, com apenas duas décadas de vida. No centro, num quase imperceptível reflexo, surge o vestígio negro do fotógrafo. Este, uma vez detectado, capitula, abandona o seu covil, e entrega-se como punctum improvável ao olhar do observador.


Robert Frank, Andrea, Pablo, Mary, Texas, 1956

Como terão sobrevivido, na memória de Frank, as imagens dos filhos? Ter-se-ão mantido, ilusoriamente, reais, vivas? Ou terão sido também substituídas por ícones artificiais?, produtos contrafeitos pela estrutura cerebral de um criador de imagens sem cor, e inspirados em recordações tão perfeitas como a fotografia referida, na qual Robert Frank congelou, num qualquer lugar do Texas, e para a eternidade, as expressões daqueles que o seguiam na grande aventura. Todas as famílias têm fotografias assim. Enquanto posavam, estavam todos protegidos pelo espaço de alguns segundos e estes segundos tornaram-se uma realidade. Da simplicidade destas palavras de Patrick Modiano, em Dora Bruder, solta-se uma sageza triste e solitária, que não é mais do que resignação perante o inevitável drama humano.


Robert Frank nasceu em 1924 em Zurich. Em 1947 parte para Nova Iorque, onde trabalha na Harper’s Bazaar, Fortune, Life e Look. Em 1955 e 1956, graças à obtenção de a uma bolsa Guggenheim, viaja exaustivamente pelos Estados Unidos da América. Dessa viagem resulta o livro Les Americains, publicado em 1958 em França e Itália. Mal recebido nos Estados Unidos, onde foi rotulado de anti-americano, o livro só chegaria à terra dos retratados no ano seguinte, prefaciado por Jack Kerouac. Marco enorme na História da Fotografia, a obra serviu de charneira no percurso de Frank: em 1960, guarda a Leica e passa a dedicar-se apenas à realização de filmes. Mas o fotógrafo não encontrou na vida um eco do seu sucesso como artista. Para além da perda de dois filhos, Frank teve que lidar com a deficiência mental do seu irmão, experiência dolorosa que retratou em Me and My Brother, filme concluído em 1968.


Regressa à Fotografia em 1972. Abandona o estilo que o consagrou, renega a herança de Walker Evans, e inicia um período menos formal, de menor pendor documental e fortemente marcado pelos cruéis acontecimentos que devastam a sua vida pessoal e pelo ambiente gélido e agreste que rodeia o seu refúgio na Nova Escócia, a casa que havia comprado, em 1970, com June Leaf, a sua mais recente companheira (e com quem se casa em 1975).


Robert Frank, Sick of Goodby’s, Mabou, 1978


Robert Frank ainda vive com June Leaf em Mabou, Nova Escócia.

Carlos Miguel Fernandes


Bibliografia
1 — Calado, J. 1839-1989 Um Ano Depois/One Year Later, Porto Editora/Secretaria de Estado da Cultura.
2 — Frank, R., Robert Frank, Centre National de la Photographie (colecção Photo Poche n.10, textos de Robert Frank).

1 comentário:

Madalena Lello disse...

depois de todas as adversidades que a vida lhe pregou Robert Frank continua com a sua máxima "Keep Going".